terça-feira, 7 de setembro de 2010

Profissão perigosa

Eu costumo dizer que trabalhar com treinamento é para quem gosta de viver perigosamente. Porque sempre há um imprevisto, cada grupo é diferente e alguns reagem de maneira imprevisível, porque uma dinâmica que funciona bem com um grupo pode não funcionar com outro, porque podem surgir questionamentos a qualquer momento, porque os equipamentos às vezes falham quando mais se precisa deles, porque a atividade é instável e sujeita a forte sazonalidade. Mas eu não havia imaginado o alcance dessa afirmativa, até assistir a uma reportagem pela TV, sobre uma situação de risco enfrentada por alguns consultores e seu grupo de treinamento.
Aconteceu realmente, num tranqüilo bairro de classe média de uma grande cidade brasileira. Noite de quarta-feira, uma empresa de auto-peças fechada, mas em seu interior havia um grupo de pessoas trabalhando. Não se tratava de uma recontagem do estoque, mas de um treinamento. Toda a equipe da loja participava, além de vários convidados de outras empresas do setor. Entre funcionários, convidados, proprietários e consultores, eram umas cinqüenta pessoas. A palestra de abertura do curso estava em vias de começar, aguardavam apenas a chegada de alguns retardatários.
Sem suspeitar do que acontecia lá dentro, um grupo de quinze ladrões armados seqüestrou um funcionário dos Correios que dirigia um carro de entrega e assim eles conseguiram passar pela segurança. Foi grande a surpresa de ambos os lados, quando os bandidos deram de cara com o grupo em treinamento. Assim que entraram os assaltantes começaram a render todo mundo, tomando os celulares a fim de evitar que as pessoas ligassem para a polícia. Os convidados que chegavam eram rendidos e incorporados ao grupo. Pelo sim, pelo não, os amigos do alheio resolveram manter todos como reféns até aviarem o “pedido”.
Além dos revólveres, os amigos do alheio tinham em mãos uma extensa “lista de pedido” de peças, a ser aviada com o produto do pretendido furto. Para transportar a peças, dispunham de um caminhão. Enquanto alguns mantinham os consultores e seus treinandos sob a mira dos revólveres, os outros foram para o setor de expedição, selecionar e embalar as peças.
Os que ficaram tomando conta dos reféns, para não perder a viagem, resolveram fazer logo um arrastão, confiscando carteiras, cartões e talões de cheques de todo mundo. Não abriram exceção nem para os convidados, nem para os consultores.
A coleta estava em andamento, quando tocou a campainha. Uma, duas, três vezes, insistentemente. Acontece que a responsável pela organização do evento havia pedido pizzas para o intervalo. Conclusão: o entregador de pizzas também ficou retido, mas as pizzas foram generosamente compartilhadas com todos, o que serviu para acalmar um pouco o ambiente. O trabalho na expedição prosseguia em ritmo acelerado, mas a lista do receptador era realmente extensa. Pelo jeito, o “cliente” daqueles ladrões tinha uma grande frota para consertar. Ou então... bem, não adianta especular, porque a reportagem que eu assisti não revelou a identidade do mandante do crime.
O tempo passando, o movimento da pizzaria aumentando... e o entregador de pizzas não voltava. Com tantos pedidos para entregar, um único motoqueiro não daria conta. Os donos da pizzaria ligaram para o celular do motoqueiro desaparecido, deu caixa postal. Tentaram o número fornecido por quem fizera o pedido... nada. Ninguém atendia. Em desespero, mandaram o outro motoqueiro verificar, mas ele também ficou preso, convidado para o “jantar”..
Já suspeitando que algo de muito incomum estava acontecendo, um dos donos da pizzaria foi atrás. Chegou ao fatídico endereço, tocou a campainha, tocou, tocou... e também ficou lá, sem relógio e sem documento, rendido pelos assaltantes armados.
O telefone da pizzaria não parava de tocar, clientes faziam novos pedidos... e o sócio restante em pânico, sem equipe de entrega e sem poder sair para investigar os sumiços misteriosos. Sem alternativa, telefonou para a polícia, que - mesmo achando aquela história muito mal contada - resolveu investigar. Apanhados em flagrante, os bandidos reagiram à bala e depois fizeram ameaças aos reféns, seguidas pelas exigências de praxe.
A mobilização policial foi grande, doze viaturas e um helicóptero foram mobilizados, chamando a atenção de toda a vizinhança. O local foi cercado. Onze ladrões fugiram e, depois de quatro horas de negociações intermediadas por um dos consultores, os restantes acabaram se rendendo, desistindo de aviar o pedido tão meticulosamente listado pelo receptador.
Naquela noite seria difícil retomar o treinamento, pois, além da hora avançada, certamente o grupo teria dificuldades para se concentrar nos jogos e dinâmicas propostos. Os consultores provavelmente consideraram a hipótese de, em meio a gostosas gargalhadas, dizer ao grupo que tudo aquilo tinha sido apenas um “jogo”, uma nova e revolucionária técnica de teatro-treinamento, com atores ensaiados fazendo papel de assaltantes... mas, apesar do absurdo da situação, tudo fora verossímil demais. E provavelmente os consultores também não achavam graça nenhuma do acontecido.
No fim tudo acabou em pizza, menos para os quatro assaltantes presos... e para os donos da pizzaria, que ficaram sem atender os pedidos e perderam a féria da noite.... e para os instrutores de treinamento que, assustados, já devem estar pensando em incluir, nas próximas propostas, um fee como adicional de periculosidade.
Alberto Centurião

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