quarta-feira, 23 de novembro de 2022

Brasil – A Febre

Essa fase que nós, sociedade brasileira, estamos passando, parece uma febre. Parece, não. É. Analogamente a um processo infeccioso no organismo físico, vivemos intensa fase febril no organismo social.

Febre não é doença. Como sabem os esculápios, febre é sintoma. Indicativo, na maioria dos casos, de processos infecciosos causados por vírus e bactérias. Viroses têm ciclo de curta duração, ocasionando processos agudos com maior ou menor gravidade. Já as bactérias são mais pertinazes, persistindo no organismo por tempo indeterminado, sustentando infecções crônicas que podem, eventualmente, se agravar produzindo quadros agudos.

Pois bem, consideremos uma infecção bacteriana crônica, difusa, com que convive há muito tempo o organismo; no caso, o nosso organismo social, vulgo Brasil. A doença estava lá, mas em geral não era notada ou não se lhe dava atenção, devido aos quadros febris leves e passageiros e, embora causasse algum mal-estar eventual, era tolerada pelo paciente, que negligenciou o tratamento.

Havendo, porém, uma infecção instalada, há sempre o risco de o quadro crônico evoluir para agudo, bastando para isso uma queda na capacidade de resposta do sistema imunológico ou uma eventual agressão ao organismo. Foi o que aconteceu no Brasil. A baixa resposta imunológica pode ser causada por inúmeros fatores que debilitem o organismo, como alguma doença incidental ou crônica, parasitose, traumas físicos ou psicológicos, a senectude e a desnutrição, que pode ter origem na falta ou no excesso alimentar.

Viramos o século com o organismo social convalescente de um câncer do qual fomos acometidos por mais de duas décadas, de meados de 60 até que o organismo reagiu na década de 1980. Como sabe quem já teve câncer, o medo da recidiva permanece como sequela psicológica e foi isso que aconteceu com o nosso Brasil. Convalescentes e amedrontados, queríamos esquecer o câncer do militarismo evitando falar dele, fazendo de conta que nunca existira, embora cada gripe ou diarreia nos fizesse lembrar dos anos de chumbo. Ocorre que a existência ou o temor de uma doença pode ocultar outra, que acaba avançando por falta de tratamento, porque o paciente – o organismo doente – confunde os sintomas e se equivoca no tratamento.

Assim foi no Brasil, que, por medo do mito da caserna, deixou de olhar para as feridas abertas no tecido social, convivendo passivamente com as bactérias do sexismo, da exclusão, do preconceito e do fundamentalismo. E desse modo vivemos até a virada do século, debilitados econômica e socialmente.

Os anos zero zero foram marcados pelo fim dessa convalescença. Superado o risco de recidiva, diagnosticado em remissão do antigo câncer, o organismo social pode se permitir algumas extravagâncias; como ir para a universidade, distribuir renda, sair do armário, viajar de avião e tomar três refeições ao dia, incluindo picanha no cardápio. Mas a bactéria estava lá. A bactéria do fascismo, o ovo da serpente. Fisiologismo político, corrupção endêmica na administração e nos serviços públicos, déficit na educação de base, bolsões de miséria urbana e rural, convivendo com um próspero mercado da fé, que, nutrido pelo analfabetismo social, desembocou no fundamentalismo religioso.

O primeiro surto da febre eclodiu em 2013, ano marcado por distúrbios sociais de pauta indefinida. Tomado de surpresa, o organismo que se pretendia saudável não tinha anticorpos para combater tais bactérias, ainda mal identificadas. O surto passou e aparentemente foi retomada a normalidade, só que não. A infestação crônica, que vinha de longe, não apenas permaneceu, mas entrou em acelerado processo de multiplicação, que, silenciosamente, foi se alastrando pelos órgãos até se tornar generalizada. Então veio a febre. Intensa, traumática, debilitante. Esse período febril já dura oito anos, período equivalente a dois mandatos presidenciais. Enfraquecido, o sistema imunológico demorou a reagir e a febre alcançou níveis críticos a partir de 2019, provocando prostração e convulsões. Esse mal-estar geral foi assustador, pois quem já se curou de um câncer convive com esse fantasma em seu imaginário generalizado. Houve momentos em que os médicos questionaram se o organismo teria forças para resistir a tão formidável ataque bacteriano, ou se haveria de tornar-se definitivamente pasto aos micróbios.

Mas, como dissemos no início, febre é sintoma e indica que o organismo está em luta contra os agentes infecciosos. O que causa a febre é o metabolismo acelerado, necessário à produção de anticorpos para o confronto, que ocorre em nível celular. O surto febril mais intenso, portanto, se dá quando o organismo funciona em alerta máximo contra o invasor, colocando todos os órgãos em ação defensiva e colocando em circulação os macrófagos famintos de células infectadas. Considerando que somos todos células do tecido social, cada cidadão que luta em defesa da liberdade e da igualdade de direitos é um leucócito, um macrófago , um fagócito que age neutralizando a proliferação das bactérias, combatendo a infecção em seu ambiente, sistema ou órgão.

É hora de auxiliar o doente, ministrando antibióticos. Mas que seriam antibióticos a serem ministrados em escala social? Lideranças. Comunicação de massa e mobilizações coletivas, agentes de organização social da militância organizada, fatores de alinhamento de forças e objetivos; antagonistas em alianças eventuais para confrontar um inimigo comum. Foi o que aconteceu no Brasil nos últimos quatro anos. Era preciso conter o processo infeccioso que veio a furo.

Vale destacar que antibióticos podem ser bactericidas ou bacteriostáticos. Os bactericidas causam a morte de bactérias, enquanto os bacteriostáticos atuam impedindo a multiplicação delas. Na hora de eleger um antibiótico para o tratamento, o doutor deve tomar uma decisão: seu objetivo é eliminar as células infectadas ou neutralizá-las, impedindo sua proliferação? Sua ação será repressiva ou educativa?

Alguém sempre vai argumentar em favor da autodeterminação das células, defendendo sua liberdade de agir e expressar opiniões a qualquer preço, mas é preciso lembrar que até mesmo o homicídio se justifica, quando em legítima defesa. Quando a febre recrudesce, é necessário questionar o que vale mais: a célula ou o organismo? Lembrando que, se o organismo sofre, as células sofrem com ele; e se o corpo morre, as células morrem também. Portanto, quando o estado febril se agrava em decorrência de uma infecção agressiva, é preciso avaliar se o organismo tem o direito de impedir essa célula de inocular bactérias patogênicas em outras células do seu entorno, ou se é à célula que seria dado o direito de fazer o que bem entender. É chegado o momento de traçar um limite entre o interesse individual e o coletivo. Fazer a distinção entre o direito a opinião e o pretenso direito de difundir mentiras, insultos, notícias falsas e propagar opiniões tóxicas. Cabe ao organismo agir em legítima defesa, ministrando os antibióticos disponíveis na farmacopeia constitucional e na farmácia jurisdicional.

Os meses de setembro e outubro de 2022 foram marcados pelo auge do processo febril, quando houve sério risco de septicemia – a infecção generalizada –, capaz de levar o doente ao cemitério e retrogradar a sociedade aos anos de chumbo por tempo indefinido. Felizmente, graças à ação antibiótica de uma grande liderança, associada a outras lideranças aliadas, mas também graças ao heroísmo individual das células combatentes, finalmente a febre começou a ceder. Passada a fase crítica da doença, já superamos o risco de septicemia e confiamos que o doente vai sobreviver ao processo infeccioso. Os meses de novembro e dezembro de 2022 marcam o período crítico da recuperação. A infecção ainda resiste em focos isolados, atacando em órgãos secundários, como estradas e portas de quartéis, mas o corpo do nosso Brasil vai aos poucos recuperando seu viço e vigor, nutrido pelo tônico da esperança e o depurativo do amor à liberdade.

Debelada a fase aguda, será necessário fazer profilaxia e fisioterapia para revigorar o organismo, evitando-se as recaídas. Resta saber quais medidas profiláticas, com utilização dos tônicos da arte, os antitóxicos da educação e os estimulantes da Igualdade por meio da inclusão cultural, social e econômica serão ministrados, na medida necessária para a erradicação da moléstia, ou se alguns focos infecciosos persistirão, mantendo a cronicidade do estado patológico não devidamente extinto. Fato é que a sociedade brasileira ainda terá que conviver com o fascismo endêmico existente no passado, com a diferença que agora esses focos infecciosos estão devidamente identificados e poderão receber tratamento eficaz por meio da homeopatia da educação, dos alopáticos da comunicação e da acupuntura da arte; sob pena de recrudescer no futuro, sobrevindo novo surto dessa febre social tão deletéria.

Seja como for, o organismo, bastante traumatizado, precisa agora de tratamento intensivo para a desintoxicação dos relacionamentos, a reconstituição da flora intestinal nos campos profissionais e a rearmonização dos tecidos nervosos e do sistema emocional no âmbito familiar e religioso. Para que todas as células deste organismo social, ou pelo menos a maioria delas, redescubram que amar o país é, sobretudo, amar as pessoas que nele habitam e isso inclui acolher e tratar os doentes e desequilibrados, porque uma sociedade saudável ensina seus filhos a conviver com os diferentes.

Essa fase convalescente requer dieta estimulante e desintoxicante, regada a festa e alegria. Uma junta de especialistas já foi enviada ao exterior em busca de um poderoso agente de comoção e integração social, a ser adquirido logo ali, na farmácia do Catar, um produto dos Laboratórios FIFA. Se nossos expedicionários forem bem sucedidos e nos trouxerem o tão esperado Hexa, quiçá em breve estejamos todos nos abraçando e pulando de alegria, a redescobrir juntos o prazer de ser brasileiros.

AC – 21/11/2022