Essa fase que nós, sociedade
brasileira, estamos passando, parece uma febre. Parece, não. É. Analogamente a
um processo infeccioso no organismo físico, vivemos intensa fase febril no
organismo social.
Febre não é doença. Como
sabem os esculápios, febre é sintoma. Indicativo, na maioria dos casos, de
processos infecciosos causados por vírus e bactérias. Viroses têm ciclo de
curta duração, ocasionando processos agudos com maior ou menor gravidade. Já as
bactérias são mais pertinazes, persistindo no organismo por tempo
indeterminado, sustentando infecções crônicas que podem, eventualmente, se
agravar produzindo quadros agudos.
Pois bem, consideremos uma
infecção bacteriana crônica, difusa, com que convive há muito tempo o
organismo; no caso, o nosso organismo social, vulgo Brasil. A doença estava lá,
mas em geral não era notada ou não se lhe dava atenção, devido aos quadros
febris leves e passageiros e, embora causasse algum mal-estar eventual, era
tolerada pelo paciente, que negligenciou o tratamento.
Havendo, porém, uma infecção
instalada, há sempre o risco de o quadro crônico evoluir para agudo, bastando
para isso uma queda na capacidade de resposta do sistema imunológico ou uma
eventual agressão ao organismo. Foi o que aconteceu no Brasil. A baixa resposta
imunológica pode ser causada por inúmeros fatores que debilitem o organismo,
como alguma doença incidental ou crônica, parasitose, traumas físicos ou
psicológicos, a senectude e a desnutrição, que pode ter origem na falta ou no
excesso alimentar.
Viramos o século com o
organismo social convalescente de um câncer do qual fomos acometidos por mais
de duas décadas, de meados de 60 até que o organismo reagiu na década de 1980.
Como sabe quem já teve câncer, o medo da recidiva permanece como sequela
psicológica e foi isso que aconteceu com o nosso Brasil. Convalescentes e amedrontados,
queríamos esquecer o câncer do militarismo evitando falar dele, fazendo de
conta que nunca existira, embora cada gripe ou diarreia nos fizesse lembrar dos
anos de chumbo. Ocorre que a existência ou o temor de uma doença pode ocultar
outra, que acaba avançando por falta de tratamento, porque o paciente – o
organismo doente – confunde os sintomas e se equivoca no tratamento.
Assim foi no Brasil, que, por
medo do mito da caserna, deixou de olhar para as feridas abertas no tecido
social, convivendo passivamente com as bactérias do sexismo, da exclusão, do
preconceito e do fundamentalismo. E desse modo vivemos até a virada do século, debilitados
econômica e socialmente.
Os anos zero zero foram marcados pelo fim dessa convalescença. Superado o
risco de recidiva, diagnosticado em remissão do antigo câncer, o organismo
social pode se permitir algumas extravagâncias; como ir para a universidade,
distribuir renda, sair do armário, viajar de avião e tomar três refeições ao
dia, incluindo picanha no cardápio. Mas a bactéria estava lá. A bactéria do
fascismo, o ovo da serpente. Fisiologismo político, corrupção endêmica na
administração e nos serviços públicos, déficit na educação de base, bolsões de
miséria urbana e rural, convivendo com um próspero mercado da fé, que, nutrido
pelo analfabetismo social, desembocou no fundamentalismo religioso.
O primeiro surto da febre eclodiu
em 2013, ano marcado por distúrbios sociais de pauta indefinida. Tomado de
surpresa, o organismo que se pretendia saudável não tinha anticorpos para
combater tais bactérias, ainda mal identificadas. O surto passou e
aparentemente foi retomada a normalidade, só que não. A infestação crônica, que
vinha de longe, não apenas permaneceu, mas entrou em acelerado processo de
multiplicação, que, silenciosamente, foi se alastrando pelos órgãos até se
tornar generalizada. Então veio a febre. Intensa, traumática, debilitante. Esse
período febril já dura oito anos, período equivalente a dois mandatos
presidenciais. Enfraquecido, o sistema imunológico demorou a reagir e a febre
alcançou níveis críticos a partir de 2019, provocando prostração e convulsões.
Esse mal-estar geral foi assustador, pois quem já se curou de um câncer convive
com esse fantasma em seu imaginário generalizado. Houve momentos em que os
médicos questionaram se o organismo teria forças para resistir a tão formidável
ataque bacteriano, ou se haveria de tornar-se definitivamente pasto aos
micróbios.
Mas, como dissemos no início,
febre é sintoma e indica que o organismo está em luta contra os agentes
infecciosos. O que causa a febre é o metabolismo acelerado, necessário à
produção de anticorpos para o confronto, que ocorre em nível celular. O surto
febril mais intenso, portanto, se dá quando o organismo funciona em alerta
máximo contra o invasor, colocando todos os órgãos em ação defensiva e colocando
em circulação os macrófagos famintos de células infectadas. Considerando que
somos todos células do tecido social, cada cidadão que luta em defesa da
liberdade e da igualdade de direitos é um leucócito, um macrófago , um fagócito
que age neutralizando a proliferação das bactérias, combatendo a infecção em
seu ambiente, sistema ou órgão.
É hora de auxiliar o doente,
ministrando antibióticos. Mas que seriam antibióticos a serem ministrados em
escala social? Lideranças. Comunicação de massa e mobilizações coletivas,
agentes de organização social da militância organizada, fatores de alinhamento
de forças e objetivos; antagonistas em alianças eventuais para confrontar um
inimigo comum. Foi o que aconteceu no Brasil nos últimos quatro anos. Era
preciso conter o processo infeccioso que veio a furo.
Vale destacar que antibióticos podem
ser bactericidas ou bacteriostáticos. Os bactericidas causam a morte
de bactérias, enquanto os bacteriostáticos atuam impedindo a multiplicação
delas. Na hora de eleger um antibiótico para o tratamento, o doutor deve tomar
uma decisão: seu objetivo é eliminar as células infectadas ou neutralizá-las,
impedindo sua proliferação? Sua ação será repressiva ou educativa?
Alguém sempre vai argumentar
em favor da autodeterminação das células, defendendo sua liberdade de agir e
expressar opiniões a qualquer preço, mas é preciso lembrar que até mesmo o
homicídio se justifica, quando em legítima defesa. Quando a febre recrudesce, é
necessário questionar o que vale mais: a célula ou o organismo? Lembrando que,
se o organismo sofre, as células sofrem com ele; e se o corpo morre, as células
morrem também. Portanto, quando o estado febril se agrava em decorrência de uma
infecção agressiva, é preciso avaliar se o organismo tem o direito de impedir
essa célula de inocular bactérias patogênicas em outras células do seu entorno,
ou se é à célula que seria dado o direito de fazer o que bem entender. É
chegado o momento de traçar um limite entre o interesse individual e o
coletivo. Fazer a distinção entre o direito a opinião e o pretenso direito de
difundir mentiras, insultos, notícias falsas e propagar opiniões tóxicas. Cabe
ao organismo agir em legítima defesa, ministrando os antibióticos disponíveis
na farmacopeia constitucional e na farmácia jurisdicional.
Os meses de setembro e
outubro de 2022 foram marcados pelo auge do processo febril, quando houve sério
risco de septicemia – a infecção generalizada –, capaz de levar o doente ao
cemitério e retrogradar a sociedade aos anos de chumbo por tempo indefinido.
Felizmente, graças à ação antibiótica de uma grande liderança, associada a
outras lideranças aliadas, mas também graças ao heroísmo individual das células
combatentes, finalmente a febre começou a ceder. Passada a fase crítica da
doença, já superamos o risco de septicemia e confiamos que o doente vai sobreviver
ao processo infeccioso. Os meses de novembro e dezembro de 2022 marcam o
período crítico da recuperação. A infecção ainda resiste em focos isolados,
atacando em órgãos secundários, como estradas e portas de quartéis, mas o corpo
do nosso Brasil vai aos poucos recuperando seu viço e vigor, nutrido pelo
tônico da esperança e o depurativo do amor à liberdade.
Debelada a fase aguda, será
necessário fazer profilaxia e fisioterapia para revigorar o organismo,
evitando-se as recaídas. Resta saber quais medidas profiláticas, com utilização
dos tônicos da arte, os antitóxicos da educação e os estimulantes da Igualdade por
meio da inclusão cultural, social e econômica serão ministrados, na medida
necessária para a erradicação da moléstia, ou se alguns focos infecciosos
persistirão, mantendo a cronicidade do estado patológico não devidamente
extinto. Fato é que a sociedade brasileira ainda terá que conviver com o
fascismo endêmico existente no passado, com a diferença que agora esses focos
infecciosos estão devidamente identificados e poderão receber tratamento eficaz
por meio da homeopatia da educação, dos alopáticos da comunicação e da
acupuntura da arte; sob pena de recrudescer no futuro, sobrevindo novo surto
dessa febre social tão deletéria.
Seja como for, o organismo,
bastante traumatizado, precisa agora de tratamento intensivo para a
desintoxicação dos relacionamentos, a reconstituição da flora intestinal nos
campos profissionais e a rearmonização dos tecidos nervosos e do sistema
emocional no âmbito familiar e religioso. Para que todas as células deste
organismo social, ou pelo menos a maioria delas, redescubram que amar o país é,
sobretudo, amar as pessoas que nele habitam e isso inclui acolher e tratar os
doentes e desequilibrados, porque uma sociedade saudável ensina seus filhos a
conviver com os diferentes.
Essa fase convalescente
requer dieta estimulante e desintoxicante, regada a festa e alegria. Uma junta
de especialistas já foi enviada ao exterior em busca de um poderoso agente de
comoção e integração social, a ser adquirido logo ali, na farmácia do Catar, um
produto dos Laboratórios FIFA. Se nossos expedicionários forem bem sucedidos e
nos trouxerem o tão esperado Hexa, quiçá em breve estejamos todos
nos abraçando e pulando de alegria, a redescobrir juntos o prazer de ser
brasileiros.
AC – 21/11/2022